A autonomia e outras contradições
- Contratamos as pessoas mais capacitadas para, depois, lhes dizer o que fazer.
- Buscamos profissionais com uma nova maneira de ver as coisas, mas exigimos que sigam padrões.
- Pedimos para terem visão de longo prazo, mas recompensamos apenas os resultados do presente.
- Valorizamos a cooperação e o trabalho em equipe, mas incentivamos a competição.
- Falamos de inovação, mas não queremos correr riscos.
A lista de contradições no mundo dos negócios é extensa. Um mundo que clama por maior proatividade e iniciativa, como vimos no texto Liderança na Era Pós-Digital, mas não abre mão do controle e de processos padronizados.
No texto Propósito e Motivação, vimos que o desejo de ser auto orientado é um dos principais atributos que resultam em melhor performance e satisfação pessoal. No post de hoje, selecionamos três fatores contraditórios que nos levam ao Paradoxo da Autonomia: a Microgestão, a Responsabilidade e a Igualdade.
Microgestão
Há cerca de um ano atrás, comecei a me aventurar nas quadras de tênis. Logo de início, tive uma grande dificuldade em acertar a direita (forehand). Tentava de tudo, ajustar a pegada, bater mais embaixo da bola, ajustar o posicionamento das pernas, fechar o braço mais rápido para gerar um bom “topspin”, enfim, tentava controlar cada etapa do processo.
Após ouvir vários conselhos, que indicavam ainda mais ajustes, percebi que meu principal problema estava em como eu pensava no golpe, meu mindset. Eu estava focado apenas em como bater na bola, não em onde queria que ela fosse. Quando passei a focalizar o objetivo do golpe e deixei que os reflexos inconscientes, que estavam sendo desenvolvidos com a repetição, fizessem seu trabalho, meu jogo melhorou muito.
Esse simples exemplo me fez pensar bastante em como alguns gestores estão conduzindo suas equipes. Na gana por garantirem os resultados, prazos e alguma sensação de controle, acabam fazendo a microgestão de todo processo e, como no tênis, pensam apenas em como todos deveriam agir e não para onde estão indo.
Chris Argyris, professor de Harvard, dedicou sua vida a entender os efeitos dessa dinâmica. Em 1957, publicou Personalidade e Organização. Segundo seus estudos, todas as pessoas têm potenciais, que, se desenvolvidos, beneficiam as próprias pessoas e as organizações para as quais trabalham. No entanto, “as organizações seriam administradas de maneira a impedir o desenvolvimento de potenciais e a materialização dos benefícios.”
Para Argyris, os métodos de administração e a falta de competência nas relações humanas normalmente condenam as pessoas à imaturidade. Sendo a falta de autonomia, uma das causas centrais do problema:
“As situações de trabalho são muitas vezes estreitas, com responsabilidades limitadas, provocando a falta de interesse no aproveitamento de oportunidades para crescer.”
Chris Argyris
O estudo de Argyris é concluído com uma contradição das organizações, que precisam ser dinâmicas para enfrentar o ambiente, mas incentivam a estabilidade. “Esse tipo de contradição faz com que os gestores tenham uma visão reduzida da realidade sobre a qual precisam ter controle e, assim, a discussão aberta dos problemas da organização torna-se arriscada e, portanto, evitada.” Nesse ambiente, a única coisa que se aprende é seguir as regras, sem a aquisição de novas competências ou a liberdade de fazer as próprias escolhas.
O Paradoxo da Autonomia começa a tomar forma quando entendemos que a microgestão pode trazer resultados determinantes em alguns cenários, principalmente quando estamos falando de um mercado com grande maturidade, que é decidido por detalhes. Por outro lado, trata-se de um processo mais lento, que priva a autonomia e o desenvolvimento da equipe, altera pouco o ponteiro e pode não ser o suficiente para a competição veloz da Era Pós-Digital.
Responsabilidade
Infelizmente, apenas adaptar o microgerenciamento para cada situação, não resolveria o Paradoxo da Autonomia. Afinal, as coisas nem sempre vão dar certo quando as pessoas tiverem o poder de fazer suas próprias escolhas. Nesses casos, de quem é a culpa?
Ben Horowitz apresenta um ótimo exemplo no livro “O Lado Difícil das Situações Difíceis”: Uma engenheira de software identifica na arquitetura de seu produto um ponto fraco que prejudicará de modo significativo a sua capacidade de atender um maior número de usuários daqui a algum tempo. Ela calcula que terá de atrasar o cronograma do produto em três meses para solucionar o problema, o que acaba sendo considerado aceitável por todos. No fim, o atraso acaba sendo de nove meses, mas o diagnóstico inicial a respeito do problema estava correto. Você deve recompensá-la por sua criatividade e coragem ou chamar sua atenção pelo atraso?
- Se você der uma de promotor de justiça e avaliá-la segundo a letra da lei, vai desencorajar tanto ela quanto todos os outros a correr riscos importantes no futuro. Se tomar essa atitude regularmente, não se surpreenda se seus funcionários não tiverem tempo para resolver problemas, pois estarão ocupados demais tentando se proteger.
- Por outro lado, se você não responsabilizá-la pelo atraso, as pessoas que efetivamente trabalham para cumprir os compromissos assumidos se sentirão incomodadas. Por que passei a noite acordado para cumprir o prazo se a pessoa que atrasou seis meses foi recompensada?
“Se os seus funcionários mais esforçados e produtivos se sentem traídos e você está procurando um culpado, olhe-se no espelho. Você não está exigindo que as pessoas se responsabilizem pelas próprias ações.”
Ben Horowitz
Ou seja, se você diminuir a microgestão, mas não conseguir atribuir corretamente as responsabilidades, pode ter um problema ainda maior. Uma reflexão importante sobre como e por que deixamos de ter autonomia foi discutida pelos psicólogos Martin Seligmen e Steven Maier, que descobriram a chamada “Impotência aprendida“. Em uma experiência controlada, dividiram alguns cães em três grupos:
- Os do primeiro grupo foram presos em coleiras e receberam incômodos choques elétricos, mas podiam apertar uma alavanca para interromper os choques.
- Os do segundo grupo foram colocados numa coleira idêntica, com a mesma alavanca e o mesmo choque, mas havia um problema: a alavanca não funcionava, e o cão ficava impotente para acabar com o choque elétrico.
- O terceiro grupo simplesmente ficou preso na coleira mas não recebeu choques.
Depois, cada cão foi colocado num grande cercado com uma divisória baixa no meio. Os que ficavam em um lado do cercado recebiam choques, os que ficavam do outro, não. Então algo interessante aconteceu.
Os cães que, na primeira parte da experiência, conseguiram interromper os choques ou não tinham levado nenhum logo aprenderam a pular a divisória e ir para o lado sem choques. Mas o mesmo não aconteceu com os cães que ficaram desamparados na primeira parte da experiência. Esses não se adaptaram nem se ajustaram, nada fizeram para evitar os choques. Isso porque não sabiam que havia uma segunda opção: tinham aprendido a impotência.
O relato dessa experiência foi tirado do livro “Essencialismo”, de Greg McKeown. Segundo ele, há indícios de que os seres humanos aprendem essa impotência mais ou menos da mesma maneira.
“Observei a impotência aprendida em muitas empresas para as quais trabalhei. Quando acreditam que não adianta se esforçar no trabalho, as pessoas tendem a desistir e param de tentar.”
Greg McKeown
A contradição da responsabilidade reforça o paradoxo da autonomia. Afinal, como no exemplo da arquiteta, ambas escolhas poderiam “ensinar a impotência”. Horowitz oferece alguma orientação para encontrarmos um melhor caminho. Ele afirma que não podemos, em hipótese alguma, abrir mão de cobrar o cumprimento de duas responsabilidades da equipe:
- Responsabilidade pelo Esforço: Para ser uma empresa de primeira linha, é preciso um esforço de primeira linha.
- Responsabilidade pelas Promessas: As organizações que funcionam bem possuem lemas do tipo “Promessa feita, promessa cumprida”. Exigir que as pessoas cumpram suas promessas é um fator crítico para que as coisas aconteçam.
Uma terceira responsabilidade, no entanto, é mais complicada e tem relação com os resultados. Se uma pessoa deixa de produzir o resultado prometido, devemos responsabilizá-la? Isso dependeria de três fatores:
- Tempo do funcionário na empresa: Em geral, os funcionários com mais tempo de empresa e mais experientes são capazes de prever seus resultados com maior precisão do que os novatos.
- Grau de Dificuldade: Certas coisas são difíceis por natureza. Ao avaliar a consequência de um resultado não atingido, leve em conta o grau de dificuldade.
- Riscos temerários: Você não deve punir as pessoas por correrem riscos produtivos, mas nem todos os riscos são desse tipo. Se um funcionário não atingir um resultado pretendido, avalie: ele correu riscos de forma temerária, por simples negligência, ou correu riscos produtivos que simplesmente não produziram resultados?
“A diferença entre a mediocridade e a magia com frequência surge da diferença entre deixar que as pessoas corram riscos de forma criativa e exercer um controle demasiadamente rígido sobre elas. A responsabilidade é uma coisa importante, mas não a única“
Ben Horowitz
Igualdade
O Paradoxo da Autonomia fica ainda mais interessante quando incluímos nosso terceiro fator. Até aqui, discutimos que podemos equilibrar a microgestão e deixar os funcionários mais livres para fazerem suas escolhas. Já, a responsabilidade que atribuiríamos a essas pessoas dependeria das condições citadas por Horowits: tempo de casa, grau de dificuldade e risco.
Porém, quando atribuímos pesos diferentes para situações e pessoas diferentes, a equipe irá conceber que o tratamento não foi igualitário. Afinal, as condições são relativas e dependem da percepção de cada um. Forma-se, assim, uma contradição que já é discutida há algum tempo.
Segundo Yuval Noah Harari, o mais famoso documento da Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, reconhece que todos os cidadãos têm igual valor e iguais direitos. Um argumento comum em defesa dessa democracia explicava que conceder autonomia ao povo “é bom porque os soldados e os trabalhadores de países democráticos têm desempenho melhor do que aqueles que atuam em ditaduras.”
Desde então, pessoas do mundo inteiro pouco a pouco passaram a ver igualdade e liberdade individual como valores fundamentais. Mas os dois valores são contraditórios:
“A igualdade só pode ser assegurada se forem diminuídas as liberdades daqueles que estão em melhores condições. Garantir que cada indivíduo seja livre para fazer o que desejar inevitavelmente compromete a igualdade. Toda história política do mundo desde 1789 pode ser vista como uma série de tentativas de superar essa contradição.”
Yuval Noah Harari
A política contemporânea dos Estados Unidos, por exemplo, também gira em torno dessa contradição, conforme aponta Harari. Os democratas querem uma sociedade mais igualitária, mesmo que isso signifique aumentar impostos para ajudar os mais necessitados. Mas isso infringe a liberdade dos indivíduos de gastar seu dinheiro como desejarem. Os republicanos, por outro lado, querem ampliar a liberdade individual, mesmo que isso signifique que o abismo entre a renda dos ricos e dos pobres aumentará ainda mais.
Para Finalizar
Assim como os EUA não conseguem conciliar Democratas e Republicanos, os gestores dificilmente conseguem conciliar a autonomia com a microgestão, a atribuição de responsabilidades ou com a noção de igualdade. Essas (e outras tantas) contradições podem resultar em grandes problemas se não forem bem equilibradas e administradas. Por isso é tão importante identificá-las, como fizemos hoje.
Porém, como qualquer paradoxo, o da Autonomia também não tem respostas prontas, que ofereçam uma solução completa e definitiva. Cada indivíduo tem suas próprias ideias, teorias e pontos de vista sobre cada contradição, o que muitas vezes leva a tensões, conflitos e dilemas irremediáveis. Mas isso não é um defeito.
“A contradição é uma característica tão essencial a qualquer cultura que até recebeu um nome: dissonância cognitiva. A dissonância cognitiva é, com frequência, considerada uma falha da psique humana. Na verdade, trata-se de uma qualidade vital, é aquilo que move a cultura, responsável pela criatividade e dinamismo da nossa espécie.
Da mesma forma que duas notas musicais discordantes tocadas ao mesmo tempo colocam em movimento uma composição musical, a dissonância em nossos pensamentos, ideias e valores nos compelem a pensar, reavaliar e criticar.
A consistência é o parque de diversões das mentes entorpecidas.”
Yuval Noah Harari
Referências: Essencialismo, Greg McKeown, 2014. Uma breve história da humanidade, Yuval Noah Harari, 2012. Homo Deus, Yuval Noah Harari, 2016. Teoria Geral da Administração, Antonio Maximiano, 2012. O Lado Difícil de Situações Difíceis, Ben Horowitz, 2014.