Uma discussão cada vez mais urgente
Perguntar para um jovem o que ele gostaria de ser quando crescer, nunca causou tanta ansiedade quanto nos dias de hoje. Não porque falte maturidade ao novato, mas, simplesmente, porque nem ele, nem ninguém, sabe quais serão suas opções em um futuro próximo.
E não são apenas profissões que estão na berlinda, o próprio emprego como conhecemos pode estar em xeque. A evolução da tecnologia e das relações econômicas está exigindo novas alternativas de renda.
Assim, a inquietação não é exclusiva dos mais novos, ela afeta trabalhadores de todas as idades em qualquer área de atuação.
Por isso, no post de hoje, buscaremos entender um pouco mais do que tudo isso significa na prática. Trata-se de uma investigação sobre o emprego e a renda na Era Pós-Digital.
A importância do trabalho
Antes de qualquer coisa, precisamos entender melhor o real significado do trabalho. Seria a renda a única motivação?
Para o antropologista David Graeber, autor do best seller internacional “Dívida”, a nossa noção atual é uma herança de muitos aspectos de nossa história:
Dever e poder divino
O primeiro aspecto que podemos destacar é o religioso. Segundo Graeber, seja no mito do Jardim do Éden ou no mito de Prometeus, a necessidade de trabalho é vista como “punição devido ao homem ter desafiado seu criador”.
Dessa forma, o homem teria a obrigação de trabalhar, não apenas para garantir o seu sustento, mas para pagar sua dívida com Deus.
Ao mesmo tempo, o trabalho em si, que dá aos humanos a habilidade de produzir comida, roupas ou cidades, também é visto como uma “manifestação do próprio poder divino de criação”.
Uma noção de dever e poder divinos se manifesta na relação de sociedades religiosas com o trabalho, desde muito tempo.
Fonte de propósito
Nas sociedades feudais, um novo aspecto surgiu. Aprender um ofício naquele período era visto como algo imprescindível para a formação do indivíduo.
Naquela época, as pessoas deveriam passar a adolescência sob a tutela de alguém, servindo a esse mestre, com o intuito de aprender uma profissão e o comportamento apropriado para um adulto responsável. Isso acontecia em todas as castas das sociedades medievais.
“O objetivo do trabalho, sob supervisão de um tutor, era transformar o jovem em um adulto disciplinado, até o ponto em que ele não precisasse mais trabalhar para os outros, tendo seu próprio negócio.”
David Graeber
Ser especialista na produção de algo era, portanto, a fonte mais próxima para as pessoas encontrarem um propósito em suas vidas.
Possibilidade de reforma e inclusão social
Uma citação de Abraham Lincoln, de 1861, nos ajuda a entender um senso comum que lutava para sobreviver à época:
“O trabalho é anterior e independente do capital. Capital é apenas fruto do trabalho e nunca existiria se o trabalho não existisse antes. Trabalho é superior ao capital e merece muito mais consideração.”
Abraham Lincoln
Logo, essa dinâmica ficou insustentável. A competição e os recursos escassos fizeram surgir um novo modelo econômico dominante, o capitalismo.
Com ele, a relação do salário com o trabalho também mudou, fazendo com que as pessoas que não tivessem capital, fossem obrigadas a trabalhar permanentemente para aqueles que tivessem.
Surgia uma nova classe, o proletariado, dando início ao modelo de emprego que conhecemos hoje.
Parece que anos antes da citação de Lincoln, mais precisamente em 1818, o monstro do Dr. Frankenstein, no romance de Mary Shelley, foi capaz de compreender melhor o sentimento das pessoas comuns:
“Aprendi que o bem mais estimado pelos homens era uma linhagem alta e pura unida à riqueza. Um homem podia ser respeitado com apenas uma dessas vantagens; mas sem nenhuma das duas, ele seria considerado, exceto em casos muito raros, um vagabundo ou um escravo, condenado a desperdiçar suas forças pelo lucro de poucos escolhidos.”
Foi desse sentimento que se originaram inúmeras revoltas contra a exploração do proletariado. O trabalho agora permitia aos indivíduos pertencer a um grupo e lhes dava uma causa para a qual lutar.
Possibilidade de status
A evolução da administração científica fez com que trabalhadores se tornassem extensões das máquinas industriais, com o trabalho cada vez mais intenso, maior cobrança e pressão por resultados.
O que fez muitas pessoas se renderem à essa nova realidade não foram apenas alguns direitos conquistados. Também se explica no fato de que o aumento da capacidade produtiva abria as portas ao consumismo:
“A fonte de status deixou de ser a habilidade de fazer ou criar coisas, para ser, simplesmente, a capacidade de comprá-las”
Harry Braverman
Assim, com a influência das técnicas de publicidade ao estilo Mad Men, as pessoas passaram a cobiçar cargos, posses e estilos de vida, o que, para a realidade de muitos, apenas o trabalho seria capaz de prover.
Possibilidade de sentido
Com o aumento do consumo e a busca cada vez maior por eficiência, o desemprego se tornou uma realidade muito mais dura e presente.
Ironicamente, a falta de emprego pode nos ajudar a entender melhor a sua importância. Observe, por exemplo, trechos da carta de um preocupado pai, redigida no início do século XX:
“Por favor, perdoe um pai que se atreve a escrever-lhe para interceder pelo filho (…). Todos os que se encontram em condições de julgá-lo elogiam seu talento, posso garantir que ele é extraordinariamente estudioso e diligente. Portanto, sente-se profundamente infeliz com a falta atual de emprego (…).
Além do mais, ele se sente primado por ser um fardo para nós, pessoas de posses modestas. (…) …é ao senhor que tomo liberdade de me dirigir com o humilde pedido de que leia seu artigo e escreva para ele, se possível, algumas poucas palavras de encorajamento, para que recupere sua alegria de viver (…).”
A carta não surtiu o efeito que o pai esperava. Seu filho, Albert Einstein, continuaria desempregado, “profundamente infeliz”, sentindo-se um “fardo” e “sem alegria de viver“, por mais algum tempo.
A angústia do desemprego, no entanto, não é mera preocupação exagerada de um pai. O psicólogo Viktor E. Frankl cita um tipo específico de depressão, que ele chamou de “neurose do desemprego“.
Segundo seus estudos, estar “sem emprego era considerado o mesmo que ser inútil, e ser inútil era considerado o mesmo que levar uma vida sem sentido.“
Frankl tentou persuadir muitos desses pacientes a trabalhar voluntariamente. Segundo ele, quando preenchiam seu abundante tempo livre com alguma atividade não remunerada, “mas significativa e portadora de sentido”, um efeito positivo era observado:
“A sua depressão desaparecia, embora sua situação econômica não houvesse mudado e sua fome continuasse a mesma. A verdade é que o ser humano não vive apenas de bem-estar.“
Definidor de identidade e senso de valor próprio
A importância que atribuímos ao trabalho hoje é um pouco de cada um desses aspectos. Trata-se de uma noção de dever e poder divinos, fonte de propósito e uma possibilidade clara de inclusão social, status e sentido.
O reconhecimento por um trabalho relevante ou bem feito afaga nosso narcisismo e funciona como uma afirmação de que estamos mais próximos de conquistar tudo isso.
Não importa muito o que você (acha que) acredita. Esses traços culturais estão inseridos em nossos “algoritmos mentais” e influenciam o nosso comportamento, independente de nossas crenças conscientes.
“Visite um cemitério”, provoca Graeber, “você irá procurar em vão por inscrições em lápides como, “Gerente de TI”, “Cozinheiro” ou “CEO”. Na morte, a essência dos indivíduos é marcada pelo amor que eles deram e receberam de seus entes queridos. Enquanto, em vida, de maneira oposta, a primeira questão que a maioria das pessoas faz a recém-conhecidos é alguma variação de ‘Com o que você trabalha?'”
No final das contas, o seu emprego acaba por definir quem você é.
O problema do emprego hoje
O fato de recorrermos a referências tão variadas, desde psicólogos até um monstro da ficção, nos dá uma ideia de quão complexa é a tarefa de definir a importância do trabalho para o indivíduo.
No entanto, acredito que essa pesquisa foi minimamente suficiente para seguirmos nossa investigação.
Sabendo do imenso valor que o homem dá ao trabalho, precisamos nos perguntar, então, o que há de errado com ele. Afinal, emprego e felicidade não parecem ser uma dupla indissociável.
Algumas estatísticas são, na verdade, desconcertantes. David Graeber, em seu livro Bullshit Jobs, compilou uma série de pesquisas e estudos para formar o que ele chama de “paradoxo do trabalho moderno“:
- A noção de identidade e valor próprio da maioria das pessoas é baseada em seu emprego.
- A maioria das pessoas odeia seu emprego.
Alguns podem argumentar aqui que podemos estar presenciando uma narrativa inconsciente, baseada em uma influência antiga. Afinal, se o trabalho é de alguma forma percebido como punição divina, ele realmente não deveria ser prazeroso.
Ter um trabalho pior do que o dos outros significaria que você está sendo mais bem sucedido em pagar sua dívida. Não é difícil prever que isso faria as pessoas destacarem mais o lado negativo de seus empregos.
Porém, não podemos nos contentar com uma explicação tão simples, outros aspectos da nossa relação com o trabalho estão presentes nesse paradoxo.
Um dos maiores pensadores da história, o escritor russo Dostoyevsky, desenvolveu em uma prisão na Siberia uma teoria interessante. Segundo ele, a pior tortura que alguém poderia sofrer é ser forçado a realizar um trabalho sem qualquer objetivo, por tempo indeterminado:
“Deixe um homem com a tarefa de ficar trocando a água de um poço ao outro ou movendo uma pilha de tijolos de um lugar ao outro, sem qualquer objetivo, e eu estarei convicto de que após alguns dias, o prisioneiro irá se enforcar ou cometer uma série de transgressões, preferindo morrer do que seguir com tal humilhação, vergonha e tortura.”
A teoria de Dostoyevsky parece um tanto dramática, mas pode nos ajudar a entender o que tem de errado com muitos empregos de hoje.
Uma pesquisa realizada com trabalhadores nos Estados Unidos deixaria o escritor russo um tanto alarmado:
De acordo com a edição de 2017 do State of Entrerprise Work Report, o tempo que o trabalhador de um escritório americano se dedica à sua verdadeira função, ou seja, aquilo que ele realmente foi contratado para fazer, é de apenas 39% de toda a sua jornada.
Ele passa outros 21% em reuniões, 16% lidando com emails, 11% com demandas administrativas aleatórias e outros 13% com interrupções ou qualquer coisa do tipo.
Situação que, certamente, conseguiríamos exemplificar de inúmeras maneiras. Posso apostar que a grande maioria das pessoas, ao ler esses dados, vai se lembrar de situações parecidas.
Ora, se o trabalho é capaz de determinar minha identidade, quem sou eu nos 61% restantes do meu tempo?
À primeira vista, podemos pensar que pouco importa, afinal, somos pagos por 100% do tempo, então, temos que fazer o que nos for solicitado durante toda a jornada, mesmo que for mover pilhas de tijolo de um lado ao outro.
Para Graeber, essa ideia de que alguém pertence a outro durante um período pré-determinado é algo relativamente novo em nossa sociedade.
Pense em um grego ou romano antigo que se admirasse com um vaso de cerâmica. Ele poderia tentar comprar o vaso e ainda encomendar outros; ou poderia comprar o próprio trabalhador que fez o vaso, visto que a escravidão era comum na época.
Agora, “comprar o tempo de alguém, seria impensado, estranho e exótico” até para o mais cruel dos romanos antigos. Ser um escravo, ou seja, ser forçado a atender as vontades alheias e ser mero instrumento de alguém, é considerado uma das coisas mais degradantes que um ser humano poderia viver.
Como imaginar que alguém, por espontânea vontade, iria se tornar um escravo temporário?
A situação fica ainda mais dramática quando percebemos que 39% é apenas uma média. Para Graeber, existem empregos cujas atividades são desnecessárias em 100% do tempo. É isso que ele chama de Bullshit Jobs, e aponta como um dos principais males da economia atual.
A comparação do trabalhador atual com um escravo de aluguel é um tanto exagerada. Porém, nos ajuda a concluir que é o trabalho que enobrece e valoriza o homem, não o emprego.
Passar a maior parte do seu tempo fazendo coisas desnecessárias e sem sentido causam aqueles males identificados na “neurose do desemprego”, proposta por Vitor E. Frankl, esteja você empregado ou não.
O problema do emprego amanhã
No tópico anterior, entendemos que o problema do emprego atual é que, além da renda, o homem deposita nele suas expectativas de encontrar identidade e propósito, mas acaba se deparando ainda mais com a falta de sentido.
Em um futuro breve, as coisas tendem a ser bem diferentes:
Abundância
Hoje, “praticamente cada aspecto de nossa vida cotidiana está de algum modo conectado a trocas comerciais. O mercado nos define.” Mas, segundo Jeremy Rifkin no livro Sociedade com Custo Marginal Zero, é aqui que reside a contradição:
“A lógica operacional do capitalismo está destinada a fracassar por ser bem sucedida“
Jeremy Rifkin
Pense comigo, a competitividade das últimas décadas foi baseada em eficiência. Crie tecnologias e processos mais eficientes e você estará à frente do seu concorrente. Ganha aquele que é capaz de atender uma determinada demanda com uma oferta mais competitiva.
Mas, o que acontece quando a evolução do mercado leva “as premissas da teoria econômica capitalista ao seu desfecho lógico?”
Imagine um cenário proposto por Rifkin, em que a lógica operacional do sistema capitalista atinge um sucesso acima da expectativa mais ousada, um estágio em que a competição intensa força a introdução de tecnologias de manufatura cada vez mais enxutas, reduzindo drasticamente os custos e levando a produtividade a um ponto ótimo.
Em outras palavras, o custo real de produzir cada unidade adicional – descontado o custo fixo – se torna essencialmente zero, deixando o produto praticamente gratuito. Se isso acontecesse, o lucro, a força vital do capitalismo, desapareceria.
Jeremy Rifkin
Embora pareça impensável, esse fenômeno não está tão distante e já chegou em alguns mercados.
Pense no mercado de livros, por exemplo, um número crescente de escritores está disponibilizando livros a um preço muito baixo, ou até mesmo de graça, na internet – deixando de fora editoras, gráficas, atacadistas, distribuidores e varejistas.
O custo da comercialização e distribuição de cada cópia é praticamente nulo, o investimento se concentra no tempo para criar o produto e no custo de TI e conexão.
Agora, seguindo a mesma lógica, pense no impacto em outros mercados tradicionais, quando as impressoras 3D estiverem na casa dos clientes.
Embora o capitalismo esteja longe de fechar suas portas, é evidente que seu poder antes inabalável começa a diminuir, dando lugar a uma maneira totalmente nova de organizar a vida econômica.
Jeremy Rifkin
Se foi a escassez que fez surgir o capitalismo, a abundância significa que ele já cumpriu seu papel.
Irrelevância
A adoção das tecnologias que levam o capitalismo a um ponto ótimo vai transformar o mercado de trabalho mais uma vez e gerar um capítulo intenso na história do emprego.
Como em outras revoluções que já vivemos, teremos profissões que deixarão de existir e outras que irão surgir. Porém, o problema com os novos empregos da Era Pós-Digital é que eles “exigirão altos níveis de especialização”.
É o que especula Yuval Noah Harari, no livro 21 Lições para o Século 21. Segundo o historiador, em ciclos de automação anteriores, as pessoas podiam passar de um trabalho padronizado a outro com certa facilidade.
Em 1920, um trabalhador agrícola dispensado devido à mecanização da agricultura era capaz de achar um novo emprego numa fábrica de tratores. Em 1980, um operário de fábrica desempregado poderia trabalhar como caixa num supermercado.
Essas mudanças de ocupação eram possíveis porque a migração do campo para a fábrica exigia, apenas, um retreinamento limitado.
Em 2050, porém, um caixa ou um operário da industria têxtil, que perder seu emprego para um robô, dificilmente estará apto a começar a trabalhar como oncologista, como operador de drone ou como parte de uma equipe de Inteligência Artificial em um banco.
Para piorar, as transformações serão tão rápidas que vão exigir inúmeras mudanças ao longo da vida. Não será fácil, ou sequer possível, acompanhar esse ritmo.
“Como consequência, apesar do aparecimento de muitos novos empregos humanos, poderíamos testemunhar o surgimento de uma nova classe de “inúteis”. Poderíamos de fato ficar com o que há de pior nos dois mundos, sofrendo ao mesmo tempo de altos níveis de desemprego e de escassez de trabalho especializado.“
Yuval Noah Harari
Assim, deixaremos de lutar contra a exploração para iniciar uma nova luta, contra a irrelevância do proletariado.
O último emprego
Se essas especulações se confirmarem e testemunharmos ao mesmo tempo abundância econômica e irrelevância do trabalhador, o resultado é óbvio: diminuição dos postos de trabalho.
O desemprego sempre acompanhou o capitalismo. Se não existissem desempregados, o sistema como conhecemos ruiria, pois os altos salários, que seriam gastos para contratar e reter os profissionais mais produtivos, inviabilizariam os lucros.
O drama é que, agora, com a evolução da tecnologia, a produtividade está se desvinculando da mão de obra. Os Estados Unidos, um dos países mais evoluídos tecnologicamente, são um ótimo exemplo:
Segundo Mark J. Perry, professor de economia da Universidade de Michigan, no final de 2012, a economia norte-americana havia se recuperado totalmente da recessão de 2007-2009, registrando um PIB de US$ 13,6 trilhões. Isso representava um aumento de 2,2% da produção real.
Perry observa que, embora a produção real tivesse crescido, a indústria acelerou a produção de bens e serviços com apenas 142,2 milhões de trabalhadores em 2012, ou 3,84 milhões a menos que em 2007.
“A Grande Recessão estimulou altos ganhos de produtividade e eficiência conforme as empresas cortaram o excesso de trabalhadores e aprenderam a fazer mais com menos.”
Mark J. Perry
Embora estivesse abrindo mão de muitos trabalhadores, a indústria americana estava, em paralelo, empilhando novos softwares e inovações para impulsionar a produtividade e se manter lucrativa.
No Brasil, observamos um movimento similar nos últimos anos. Quando comparamos o período do primeiro trimestre de 2016 ao primeiro trimestre de 2019, temos as seguintes variações:
O nosso PIB cresce 13% (de R$ 1,5 trilhões para R$ 1,7 trilhões), enquanto a população ocupada cai 0,02% (considerando população, de 208 milhões para 210 milhões, menos a taxa de desocupação, que variou de 9,5% para 12,5%).
Certamente, assim como nos EUA, temos outros fatores influenciando esse cenário, com destaque para a política, por exemplo.
No entanto, quando observamos um aumento de produtividade acompanhado de queda de mão de obra, não podemos ser ingênuos e descartar o papel da eficiência e da tecnologia.
Para Jeremy Rifkin, “estamos em meio a uma mudança épica”. A Primeira Revolução Industrial eliminou a escravidão e o trabalho servil. A Segunda Revolução Industrial encolheu drasticamente o trabalho artesanal e a agricultura.
A Terceira Revolução Industrial está “promovendo a substituição generalizada da mão de obra pela tecnologia inteligente, desorganizando cada vez mais o funcionamento do sistema capitalista”.
Alternativas de trabalho e renda
Agora, com todo esse contexto, temos condições de fazer perguntas ainda mais importantes sobre o nosso futuro. Se tivermos uma indústria capaz de funcionar em sua plenitude, sem precisar de tantos funcionários, teremos duas principais inquietações:
- Como a economia de mercado se sustentaria caso a população não tenha renda? Afinal, quem vai consumir os produtos e serviços produzidos pelas empresas?
- Sem emprego, onde as pessoas vão encontrar identidade, status, propósito e sentido?
Retardar o ritmo da automação não é uma opção. Precisamos de alternativas que acompanhem a evolução tecnológica e, ao mesmo tempo, resolvam essas inquietações.
O primeiro passo, segundo Harari, é reconhecer que os modelos sociais, econômicos e políticos que herdamos do passado são inadequados para lidar com tal desafio.
Os novos modelos deverão ser orientados pelo princípio de que é preciso proteger os humanos e não os empregos. “Deveríamos nos focar em prover as necessidades básicas das pessoas e em proteger seu status social e sua autoestima“, afirma o historiador.
Nesse sentido, podemos destacar duas soluções que estão sendo discutidas a nível mundial, a redução de jornada e a renda básica.
Redução de jornada
Em 1930, John Maynard Keynes previu que no final do século a tecnologia avançaria tanto que alguns países alcançariam uma jornada laboral de apenas 15 horas por semana.
Em seu ensaio intitulado “Possibilidades Econômicas para nossos Netos“, Keynes introduziu um termo novo: “desemprego tecnológico”.
O economista fez questão de salientar que, “embora aflitivo no curto prazo, trata-se de uma grande benção no longo prazo, porque significa que a humanidade estaria solucionando seu problema econômico, livrando-se do trabalho pesado e da preocupação perene por recursos.”
É importante salientar que a redução da jornada de trabalho, além de potencialmente melhorar o bem-estar de seus funcionários, favoreceria a redução do desemprego, pois abriria mais postos de trabalho.
Um dos pontos mais discutidos para ainda não termos alcançado esse mundo vislumbrado por Keynes é o avanço desenfreado do consumismo.
Porém, nesse cenário em que poderíamos unir a abundância com o tempo livre, isso pode deixar de ser um entrave.
Segundo Rifkin, os consumidores estão se tornando seus próprios produtores, eliminando essa distinção. Os prosumidores serão cada vez mais “capazes de produzir, consumir e compartilhar seus próprios bens e serviços entre si a um custo marginal decrescente.”
A automação do trabalho em todos os setores da economia de mercado já está liberando a mão de obra humana para migrar rumo à economia social:
“Daqui a meio século, nossos netos provavelmente olharão para o passado do emprego em massa com o mesmo senso de descrédito que olhamos para a escravidão e a servidão de tempos atrás.
A simples ideia de que o valor de um ser humano é medido quase exclusivamente por sua produtividade e sua riqueza material parecerá primitiva, até mesmo atroz, e será considerada como uma perda terrível de valor humano.”
Jeremy Rifkin
Na Era Pós-Digital, participar ativamente de comunidades colaborativas será tão importante quanto foi o trabalho duro na economia de mercado. O número cada vez maior de empreendedores sociais é uma demonstração clara dessa tendência.
Juntas, a abundância e a colaboração poderão democratizar a inovação e a criatividade, possibilitando a criação de valor jamais imaginado.
Assim, o vínculo com a comunidade e a busca por significado vão definir a posição de uma pessoa em vez de sua riqueza material (o que deixaria o monstro de Mary Shelley muito mais otimista com a humanidade).
Seria uma grande vitória humana na luta contra a irrelevância.
Renda Básica Universal
Outra possível solução que atrai cada vez mais a atenção é o da renda básica universal (RBU).
Segundo Harari, “A RBU propõe que os governos tributem os bilionários e as corporações que controlam os algoritmos e robôs, e usem o dinheiro para prover cada pessoa com um generoso estipêndio que cubra suas necessidades básicas.”
O custo marginal zero e a produtividade desvinculada da mão de obra são os fenômenos que sustentam esse modelo.
Uma derivação dessa ideia parece muito justa. Poderemos remunerar trabalhos que não são considerados empregos nos dias de hoje, como, por exemplo, pais ou mães que cuidam exclusivamente dos filhos:
“Talvez precisemos mudar uma chave em nossa mente e nos dar conta de que cuidar de uma criança é sem dúvida o trabalho mais importante do mundo. Assim, não haverá escassez de trabalho mesmo que computadores e robôs substituam todos os motoristas, gerentes de banco e advogados.”
Yuval Noah Harari
Isso protegerá os pobres da perda de emprego e da exclusão econômica, enquanto protege os ricos da ira populista.
Claro que, antes de qualquer coisa, precisaríamos discutir o que é “básico” e o que é “universal”, ambas são questões amplamente relativas. Além disso, para atingir seus objetivos de fato, a RPU terá de ser suplementada por ocupações dotadas de sentido e garantir um subsídio robusto à educação continuada.
David Graeber também defende o modelo de renda básica. O antropologista sustenta sua opinião no dado de que, hoje, 40% das pessoas consideram seu trabalho inútil ou desnecessário.
Dessa maneira, é pouquíssimo provável que tenhamos uma distribuição de trabalho mais ineficiente se as pessoas forem livres para escolher:
“Este é um poderoso argumento para a liberdade humana. A maioria de nós gosta de falar sobre liberdade de maneira abstrata, afirmando até que é a coisa mais importante para o indivíduo e que valeria à pena lutar e morrer por ela. Mas nós não pensamos muito sobre o que significa praticar a liberdade realmente. Precisamos começar a pensar e discutir sobre o que é uma sociedade genuinamente livre.”
David Graeber
Poderia ser o fim dos Bullshit Jobs e dos escravos de aluguel. Seria a grande chance de voltarmos a buscar sentido no trabalho e na nossa utilidade, não no emprego ou na renda.
Para finalizar
Esses modelos podem parecer distantes ou até otimistas demais, porém, já estão sendo testados em alguns países e organizações:
- A redução da jornada de trabalho foi testada em algumas empresas. A iniciativa resultou em ganho de produtividade ao eliminar parte daqueles 61% de tempo desnecessários que discutimos há pouco, como mostra a reportagem no link.
- A RBU foi experimentada durante 2 anos na Finlândia e mostrou-se bem sucedida em melhorar o bem-estar, mas falhou em esperar que as pessoas buscassem empregos tradicionais. Você pode conferir a matéria nesse link.
Para funcionarem, precisaremos considerar um ponto muito importante: essas soluções são contraditórias ao nosso viés narcisista. Precisaríamos superar o fato de que o valor individual relativo ainda é mais atraente do que o absoluto.
Apesar de parecem promissores, esses modelos podem se eternizar como utopias, que, assim como o comunismo de Karl Marx, falham ao não considerar o fator humano na sua visão de mundo ideal.
Assim, como vimos no post Sapiens 2.0, uma mudança bem sucedida nessa magnitude só será possível quando superarmos nossa própria humanidade.
Referências: Sociedade com Custo Marginal Zero, Jeremy Rifkin, 2016. 21 Lições para o Século 21, Yuval Noah Harari, 2018. Bullshit Jobs, David Graeber, 2018. Em Busca de Sentido, Viktor E. Frankl, 1984. Einstein Sua Vida, Seu Universo, Walter Isaacson, 2007. Frankenstein, Mary Shelley, 1818