Precisamos falar de frustração
“Vivemos em um mundo mais próspero. Você, provavelmente, não conheceu alguém que tenha morrido de fome. Claro que ainda temos situações de extrema pobreza, mas essa era uma condição compartilhada pela maioria, há pouco tempo atrás.
Saímos de uma época em que ter o que comer era sinônimo de felicidade, para outra em que o excesso de alimento mata mais do que a falta.
E assim, saciados, criamos novas expectativas. Afinal, precisamos de justificativas para a felicidade, algo que faça nossa luta diária ter algum sentido. Logo, sucesso, dinheiro, fama, títulos aparecem como possíveis candidatos a indicadores de uma vida feliz.
Mas, no final das contas, você não é um pato que quer nadar no seu cofre de moedas. Você quer o que o dinheiro pode comprar. Você quer o poder de ter e ser o que quiser. Vida é isso, vontade de poder, nada mais.
O sábio já dizia que o objetivo do ser humano é justificar seu nascimento. Então, se a seleção natural realmente existe, queremos ser os selecionáveis. Queremos superar o vizinho, aquele parente que “se acha“ ou o colega de trabalho. Queremos destaque o tempo todo, custe o que custar. E aí, abrimos mão da nossa própria identidade.
A expectativa agora é lastreada nos outros e aumenta de forma absurda. Um exagero impossível de ser alcançado. Uma geração rumo à frustrada tentativa de ser o que não é, de ter o que não lhe pertence.
Nasce o amor desejo. Vontade daquilo que é alheio. E aí, o diploma vai ficando empoeirado na parede e não traz a felicidade plena que o Doutor esperava.
Vida irrefletida, sem contraste, com expectativas incompatíveis ou altas demais. Vida que se aliena dentro de si, incapaz de alcançar sua melhor versão. Vida desperdiçada, em vão.
Feliz aquele que conseguiu o pão. “
Escrevi o texto acima há pouco tempo, enquanto fazia pesquisas para esse blog. Para mim, ele reflete muito bem como a maioria das pessoas tem conduzido sua vida, grupo no qual me incluo. Apesar de parecer uma visão bastante crítica (e até pessimista) em relação ao nosso comportamento, acredito que possui uma mensagem importante.
Afinal, é muito comum, em qualquer conversa, surgirem relatos sobre um sentimento de constante insatisfação e angústia, descrito como a falta de algo, que não se consegue explicar, e sem qualquer perspectiva de melhora.
Por isso, decidi consultar a opinião de grandes pensadores, desde filósofos e psicólogos até uma mestre de artes marciais coreana e um vencedor de prêmio Nobel.
Mas não se engane. Se a sua expectativa é encontrar uma solução para a frustração, esse texto não é pra você. Não é nossa intenção oferecer respostas prontas, apenas entender um pouco mais sobre as origens desse sentimento, cada vez mais presente em nossas vidas.
Necessidades Frustradas
Vamos começar com o mais óbvio. Segundo Maximiano, a principal causa da frustração são as próprias necessidades humanas, que influenciam o comportamento de duas maneiras:
- A própria manifestação das necessidades, conforme sua intensidade e natureza, impulsiona as pessoas a procurar objetivos, como empregos, realização pessoal, satisfação de vaidades ou outros interesses individuais.
- A incapacidade de satisfazer uma necessidade, por outro lado, produz o sentimento de frustração.
Em resumo, as necessidades que motivam são as mesmas que frustram. Existem alguns estudos sobre o tema, o mais famoso é o de Maslow, que já vimos em outra ocasião. Hoje, vamos abordar outro estudo, o de David McClelland, que elencou três necessidades específicas:
- nAch – Necessidade de realização (achievement) e sucesso, avaliado segundo algum padrão internalizado de excelência.
- nAff – Necessidade de filiação (affiliation), relacionamento e amizade.
- nPow – Necessidade de poder (power), controlar ou influenciar direta ou indiretamente outras pessoas.
“Uma necessidade insatisfeita, cada vez mais intensa, produz crescente sentimento de frustração e ansiedade. Como consequência dessa frustração, pode ser que uma pessoa adote um comportamento de fuga, compensação, agressão ou deslocamento.”
Antonio Maximiano
O maior problema para McClelland é que as necessidades derivam de traços da personalidade alojados nas profundezas do inconsciente. Como não estamos 100% cientes das nossas próprias motivações, o que dizemos sobre elas em entrevistas de emprego ou conversas informais, por exemplo, não pode ser levado ao pé da letra.
“Nem sempre temos consciência das nossas motivações. A competência para perceber os próprios afetos é muito rudimentar. A ponta de um iceberg. Assim, muitas vezes, agimos em plena melancolia, por ciúme, por excitação ou ira sem nos darmos conta disso.“
Clóvis de Barros Filho e Júlio Pompeu
Entender a frustração como a não superação das nossas necessidades (realização, afiliação e poder) é um importante primeiro passo. Porém, como vimos, é muito difícil entender o que nos leva a ter tais necessidades, por isso, vamos nos aprofundar um pouco mais no tema.
Propósito Incompatível
Para o filósofo Aristóteles, “existir”, seja para um objeto ou um indivíduo, significa dirigir-se a um objetivo, transformar-se de potência em ato. Segundo suas reflexões, se definimos um objeto pela matéria que o compõe e por como ele se organiza, então a causa final de algo corresponde à sua forma. O que significa, para simplificar, que as características de cada um dependem do seu fim, do seu propósito.
Se adotarmos o insight de Aristóteles e considerarmos que cada pessoa é única em sua forma e em toda sua complexidade, então, não poderíamos admitir “lastrear nossos objetivos às necessidades dos outros”. Isso não faria sentido algum. No entanto, é exatamente isso que acontece.
Geralmente, tomamos emprestado o propósito alheio, aquele que vimos em algum documentário, no discurso de um empreendedor da moda ou pela janela do vizinho. Segundo o filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard, quando tentamos ser o que não somos, apenas dois sintomas são possíveis:
- Fracasso e me desespero por não conseguir ser outro;
- Tenho êxito e me desespero porque agora não me reconheço.
A causa final de Aristóteles é, portanto, sumariamente ignorada em nossa gana de fugir de nós mesmos. Assim, nos frustramos por não nos vermos mais naquilo que fazemos ou pela constatação de que não temos o necessário para transformar a “potência” alheia em “ato” próprio.
Se o seu propósito não for autêntico, o que o desviaria da sua própria vocação (ou “forma” como diria Aristóteles), você está fadado ao fracasso pessoal. Poderá ter bens materiais, o cargo mais desejado ou o estilo de vida que for, dificilmente terá um sentimento genuíno de realização. Adotar um propósito incompatível, definitivamente, não é um bom negócio.
“Geralmente o propósito é definido pela possibilidade de felicidade aprendida, de fortuna, aplausos e assim por diante. Mas esse absolutamente não é um propósito genuíno; é invenção que os homens, na sua corrupção, enfeitam para terem a oportunidade de assumir importância aos próprios olhos e terem ao menos um pretexto para se queixar da vida.”
Sören Kierkegaard
Autoconceito Depreciativo
Existe outra situação que pode ser tão frustrante quanto um propósito incompatível: acreditar que não somos capazes ou merecedores de grandes conquistas ou feitos. Afinal, entender quem realmente somos ou do que somos capazes não é tarefa fácil.
O autoconhecimento é difícil para muitos de nós, porque nos vemos através de imagens preconcebidas que podem nos levar ao engano:
“A auto-imagem influencia as escolhas que fazemos quanto à aparência física, às opções profissionais, às pessoas com quem nos associamos e ao ambiente no qual escolhemos viver. Todas essas escolhas, mais uma série de outras, trabalham juntas para produzir nosso autoconceito.”
Tae Yun Kim
A definição acima é de uma mulher que ultrapassou barreiras físicas, mentais e sociais para se tornar a primeira coreana com grau de mestre em artes marciais, uma prática proibida para as mulheres em sua época. Hoje ela ministra treinamentos de autodesenvolvimento e é referência no assunto.
Kim afirma que pessoas que não gostam da própria aparência, por exemplo, ou se julgam pouco inteligentes, tendem a vestir-se descuidadamente, andar com uma postura relaxada e escolher um emprego que não requeira muita atividade mental.
A origem desse autoconceito depreciativo que desenvolvemos geralmente não é conhecida, ao menos de forma consciente. Segundo Kim, em algum lugar, alguma época, as pessoas começaram a acreditar nessas coisas. Geralmente tem origem na relação com determinada pessoa, grupo, ou figura autoritária, como um dos pais, professores ou chefe.
Para a coreana, se nos disseram – ensinaram– que éramos estúpidos, preguiçosos, ruins em matemática, fracassados, temperamentais, inúteis, tímidos ou belos, amistosos, atléticos, então provavelmente é isso o que ainda acreditamos que somos hoje.
As necessidades de realização, afiliação e poder, propostas por McClelland, são diretamente influenciadas por esses relacionamentos, cujos sintomas permanecem sorrateiramente guardados em nosso inconsciente.
“As pessoas encarregadas de sua formação não dizem que a opinião delas pode estar errada. Ao contrário, para manter o status de autoridade, ensinam que sua palavra é lei, e que apenas crianças, alunos ou subordinados ruins ou rebeldes que poderiam contradizê-los.”
Tae Yun Kim
(Essa marca inconsciente na personalidade das pessoas, além de nos fazer retornar ao passado, buscando algumas justificativas para nosso comportamento atual, também nos faz pensar duas vezes em como trataremos filhos, colegas e subordinados daqui pra frente, não é mesmo?)
Outras duas motivações podem influenciar ou serem influenciadas pelo autoconceito depreciativo: a necessidade de adquirir e a aversão a perda:
Necessidade de adquirir: Não existe nada errado em adquirir. Certamente precisamos de uma fonte de renda para possuir bens, como comida, roupas e habitação. Porém, a sua personalidade é definida por suas crenças de quem precisa ser para ganhar a vida. “Infelizmente, na maioria dos casos, deriva da opinião de outras pessoas sobre você, das pressões e expectativas exageradas e de muitos outros fatores sociais e psicológicos.” (Tae Yun Kim). Quando conseguimos adquirir e, ainda assim, a necessidade permanece, temos uma grande fonte de frustração.
Aversão à perda: O Nobel de Economia, Daniel Kahneman, explora esse conceito em seu premiado livro Rápido e Devagar. Define aversão à perda como a força relativa de duas motivações: “não atingir uma meta é uma perda, superar a meta é um ganho, porém, as duas motivações não são igualmente poderosas. A aversão ao fracasso de não atingir o objetivo é muito mais forte do que o desejo de superá-lo”.
Assim, o conceito que desenvolvemos de nós mesmos influencia muito mais as nossas vidas do que imaginávamos. Nossas escolhas são tentativas inconscientes de confirmá-lo.
Podemos tanto acreditar que não merecemos ter algo, como achar que nosso valor é definido justamente por aquilo que temos. Em outras ocasiões, nos apequenamos, temos mais medo de perder do que vontade de vencer. Pensamos pequeno ou desistimos cedo demais. Impomos limites ao nosso próprio futuro porque não acreditamos em nós mesmos e sim nos outros. Frustração garantida.
“Poucos de nós emergimos incólumes do processo de crescimento. Mesmo com as melhores intenções, os pais e outras figuras significativas para sua formação simplesmente não conhecem sua verdade interior da mesma forma que você. Ainda assim, tudo no ambiente, ao longo dos anos, o encorajou a silenciar a voz interior para agradar a pessoa da qual depende”.
Tae Yun Kim
A vertigem da liberdade
Kierkegaard tem outra interessante reflexão sobre propósito e frustração. Segundo ele, temos condições de escolher viver de duas maneiras fundamentais: estética ou eticamente.
A vida estética é típica daquele que busca a máxima satisfação no tempo presente. Uma existência sem reflexão que “foge de qualquer forma de repetição, procurando tornar inimitável e único cada instante de vida.” Seu lema de vida é “Viva o momento!”. Mas, dado que cada instante dura muito pouco, chega logo ao tédio e à frustração:
“Quem quer que viva esteticamente está desesperado, quer o saiba ou não, e o desespero é a única saída da vida estética.”
Sören Kierkegaard
Outra possibilidade é a abordagem ética. Definida por aquele que escolhe quem deseja ser, o seu propósito, e se impõe a disciplina necessária para tanto. Enquanto quem vive esteticamente enxerga o futuro como possibilidades aleatórias, aquele que vive eticamente sempre vê tarefas.
Viver eticamente poderia ser uma solução para a frustração, mas “nem mesmo tal escolha de vida é capaz de realizar plenamente”. Do ponto de vista do indivíduo ético, a existência significa liberdade, a possibilidade de escolher um caminho, dentre muitos possíveis. Quando fazemos uma escolha, portanto, escolhemos uma vida particular e abrimos mão de todas as outras, assim, a angústia é inevitável:
“Enquanto o medo nasce de um perigo determinado, a angústia não tem causas específicas, mas é a vertigem da liberdade, a ânsia paralisante, a náusea psíquica que colhe o indivíduo quando examina as infinitas possibilidades, positivas ou negativas, de sua existência”
Sören Kierkegaard
A frustração, de ter que renunciar muitas opções em detrimento de apenas uma, cresce com a inteligência e o conhecimento. Afinal, quem possui mais sabedoria (o ético de Kierkegaard) conhece, e portanto abre mão, de muito mais possibilidades em cada escolha que faz.
O que nos leva a acreditar, por exemplo, que um trabalho honesto e justo não é suficiente. Afinal, estaríamos abrindo mão de muitas outras possibilidades, como o “emprego dos sonhos”, aquele transformador, empolgante (que nunca é o seu).
Nos sentimos frustrados por causa das oportunidades que deixamos para trás, os filmes que não vimos, os livros que não lemos ou os amores que não vivemos. Ao invés de experimentarmos, em sua plenitude, aquilo que escolhemos, mantemos essa angustiante rotina de pensar no que poderíamos ter feito ou sido.
Uma última opção entra em cena. Na tentativa de eliminar essa angústia, algumas pessoas tentam mergulhar em mais possibilidades do que conseguem administrar, acabam se afundando em um mar de responsabilidades. A frustração de nadar, nadar e morrer na praia é uma ótima analogia para esses casos.
Vida X Morte
Existe ainda, outro fator mais dramático para a frustração perene. Para Arthur Schopenhauer, a frustração do homem é fruto do permanente choque entre nossa vontade de viver com a certeza de que vamos morrer. Por isso, abrir mão de outras possibilidades de existência é tão angustiante, nós não temos tempo de voltar atrás. Vivemos em uma luta, iminentemente fracassada, pela vida.
O psicanalista Erich Fromm apresenta uma visão muito parecida. Segundo ele, a vida está naturalmente repleta de frustrações emocionais, porque o homem vive em constante estado de conflito:
“A razão nos torna cientes da nossa própria mortalidade e da dos nossos entes queridos. Essa sabedoria produz uma fonte crônica de tensão e uma solidão insuportável que tentamos o tempo todo superar; esse estado de angústia e desesperança é inerente ao ser humano“
Erich Fromm
A única possibilidade de superar esse dilema, segundo Schopenhauer, é conhecer práticas capazes de afastar a psique do sujeito da normalidade do cotidiano, induzindo-o por um curto período de tempo a esquecer-se de que existe.
O silêncio, a reflexão introspectiva e a meditação seriam algumas maneiras de conhecer plenamente a si mesmo e, assim, se “renegar da preocupação incessante e irracional provocada pela contradição entre a vida e a morte”. Infelizmente, essas práticas não são comuns em nossa sociedade, mas esse assunto fica para outro post.
Para Finalizar
Neste post, descobrimos que:
- Se não tivermos um propósito, vamos nos sentir frustrados.
- Se adotarmos um propósito que não seja compatível com nós mesmos, vamos nos sentir frustrados.
- Se não nos desapegarmos das possibilidades que deixamos para trás, vamos nos sentir frustrados.
- Se não tivermos nossas necessidades atendidas, vamos nos sentir frustrados.
- Se não confrontarmos nosso autoconceito depreciativo, vamos nos sentir frustrados.
- Se o medo de perder nos fizer desistir, vamos nos sentir frustrados.
- Se deixarmos a vida nos levar, sem qualquer reflexão, vamos nos sentir frustrados.
- Se buscarmos responsabilidades demais, vamos nos sentir frustrados.
- Se não aceitarmos o fato de que, por mais vontade de viver que tenhamos, perderemos essa luta, vamos nos sentir frustrados.
A lista de possíveis causas de frustração é grande. Mas, para minha surpresa, consegui visualizar algo muito positivo nisso tudo. Ao escrever e pesquisar sobre frustração, me senti muito mais otimista do que quando pesquisei sobre outros temas como motivação, por exemplo. Pode ser que a primeira etapa para amenizarmos esse mal, seja descobrir as causas, não atacar cegamente os sintomas.
Referências: Antologia ilustrada de Filosofia, Ubaldo Nicola, 2005. O Livro da Psicologia, diversos autores, 2012. Rápido e Devagar, Daniel Kahneman, 2011. O Mestre Silencioso, Tae Yun Kim, 1994. A filosofia explica grandes questões da humanidade. Clóvis de Barros Filho e Júlio Pompeu, 2013.
Adorei o texto, era exatamente o que estava pocurando!