Quem está no comando? (e o que um Turco Mecânico tem a ver com isso?)
A evolução da tecnologia ao longo dos últimos anos tem sido impressionante, a rotina do ser humano foi absolutamente alterada com a utilização de máquinas, ferramentas e computadores. Hoje, não conseguimos imaginar como seriam nossas vidas sem os smartphones, Google ou Internet Banking.
As fábricas e indústrias são as principais beneficiadas, os meios de produção são potencializados ao máximo, mas todos os setores acabam passando por uma ruptura tecnológica, mais cedo ou mais tarde. As principais tendências falam de comunicação M2M, IoT, Robótica e utilização de dados massivos como o Big Data, tudo visando benefícios para a humanidade, ou pelo menos, parte dela.
É inegável que a evolução tecnológica tem sido influenciada pelo lucro (a qualquer preço) de poucos. Um recente artigo da HBR cita que essa busca cega por eficiência acaba significando que a empresa mais competitiva seria aquela composta apenas por “softwares comandando outros softwares, enquanto a economia mais “eficiente” seria 99% das pessoas trabalhando como servos para o 1%”.
O ex-ministro de finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, que ficou conhecido durante a recente crise de seu país, escreveu um texto que trata desse tema e mostra os riscos de concentrarmos o avanço tecnológico na obtenção de lucro de poucos:
“O homem civilizou-se por meio da produção de ferramentas. As máquinas são a forma mais elevada de ferramentas, e os robôs inteligentes são a expressão mais elevada das máquinas. Assim como o dr. Frankenstein desejava libertar o homem do medo da morte, as máquinas que fabricamos são a resposta ao nosso desejo compreensível de nos libertar das tarefas que nos impedem de escrever poesia de manhã, filosofar à tarde, ir ao teatro à noite e passar horas jantando com a família e amigos.
O ideal seria que a nossa capacidade de inventar e produzir escravos mecânicos nos libertasse e nos aproximasse de uma sociedade do tipo Star Trek, na qual todas as pessoas se dedicam às suas preocupações existenciais enquanto as máquinas realizam as tarefas desagradáveis. No entanto, quando as máquinas pertencem a um reduzido número de privilegiados que as utilizam como ferramentas para obter lucros, ao passo que a maioria cobra apenas pelo seu trabalho, então as máquinas acabam por ser os chefes de todos: dos seus proprietários e daqueles que trabalham ao lado delas.
Em vez de nos aproximar da utopia Star Trek, a mecanização das sociedades de mercado aproxima-nos de Matrix, fazendo com que as máquinas se pareçam mais com o monstro que o dr. Frankenstein criou. Gerações inteiras são sacrificadas em virtude das crises com que a sociedade de mercado reage bruscamente ao triunfo das máquinas.
Enquanto progredimos, alimentamos inconscientemente a semente da próxima crise e, ao mesmo tempo, estragamos o ambiente em que habitamos, envenenamos a água que bebemos, poluímos o ar que respiramos, desgastamos o solo sobre o qual vivemos. E, se o financiamento da produção de maquinaria se faz com a extração, por parte dos banqueiros, de quantidades descontroladas do valor de troca futuro, então as crises inevitáveis sacrificam mais de uma geração de trabalhadores, até que uma derrocada política ou uma guerra cancelem a dívida e comecemos tudo do princípio, mas mais miseráveis, mais divididos, mais desumanizados e numa Terra biologicamente mais empobrecida.
Podemos exorcizar os fantasmas que fazem com que as nossas criações se convertam em chefes inflexíveis do nosso destino? Existe a possibilidade de utilizarmos a tecnologia a nosso favor e a favor do planeta que destruímos a cada dia? Temos alguma resposta para aquilo que, no filme Matrix, uma das máquinas diz ao protagonista Neo?
‘Todo mamífero neste planeta desenvolve instintivamente um equilíbrio natural com o seu ambiente. Mas vocês, os seres humanos, não, vocês são exceção… Existe outro organismo neste planeta que tem o mesmo comportamento que vocês. Sabe qual é? O vírus. Vocês, seres humanos, são uma doença, um câncer para o planeta. São uma epidemia e nós, as máquinas, somos a cura’, diz a Neo a tal máquina (que se autodenomina agente Smith) depois de prendê-lo”.
Yanis Varoufakis
Eu sou um admirador da tecnologia, então, também fico incomodado quando falam de seus lados negativos, afinal, o lado positivo é facilmente observado em hospitais, transporte, segurança, distribuição de água, energia, etc.
A grande questão é saber qual é o nosso papel nessa evolução. Será que, como Varoufakis disse, somos apenas parte da fonte de lucro para os poucos detentores da tecnologia, que tiram nossa liberdade e perspectivas de futuro?
Para provocar uma reflexão ainda mais profunda, considere o Turco Mecânico. Uma máquina humanoide criada em Viena, 1769, capaz de jogar xadrez e vencer a maioria dos seus oponentes. Seu criador, Wolfgang von Kempelen, garantia que o Turco movia seus braços e peças através de engenhosos mecanismos, fazendo enorme sucesso, lotando teatros e desafiando grandes personalidades da época como Napoleão Bonaparte.
Mas, a façanha acabou sendo descoberta. Como em um truque de ilusionismo, Kempelen mantinha um enxadrista profissional escondido dentro da máquina, realizando os movimentos através de alavancas.
O termo “Turco Mecânico” hoje é utilizado para definir a necessidade de intervenção humana em aplicações que os computadores não são capazes de fazer, como, por exemplo, classificar filmes no Netflix, identificar tentativas de fraudes no Amazon.com ou reconhecer imagens.
As pessoas que fazem o papel do turco, estão espalhadas por todo mundo, algumas sendo remuneradas por isso e outras, como eu e você, trabalhando de graça.
Com certeza você já digitou um “Captcha”, aquela imagem meio apagada, meio borrada que, inicialmente servia para aumentar a segurança da rede e hoje serve, também para outro fins, como, por exemplo, decodificar endereços para o Google Street View.
Ou você não lembra de quando estava tentando realizar algum cadastro em sites ou email, e precisou se esforçar para entender quais eram o dígitos que constavam em uma foto bem ruim do número de uma casa?
Esse post é um convite à reflexão, a tecnologia deve servir à sociedade, não o contrário, o lucro de poucos não pode custar a liberdade da maioria. Para que o futuro da nossa e das próximas gerações seja próspero, precisamos provar que o agente Smith estava errado.
Qual é o seu papel: vírus, escravo ou turco mecânico?
Referências: Conversando sobre economia com a minha filha. Yanis Varoufakia, 2015. Nerdtech 01 – Os buracos da tecnologia, Nerdcast, 2016. Os truque de um turco. Disponível em: http://super.abril.com.br/historia/os-truques-de-um-turco Acesso em: 05 de março de 2016. Google using reCaptcha to decode Street View adresses. Disponível em: http://techcrunch.com/2012/03/29/google-now-using-recaptcha-to-decode-street-view-addresses/ Acesso em: 05 de março de 2016.